terça-feira, 25 de setembro de 2012

-- ESTADO & IGREJAS



Ezio Flavio Bazzo

"A ordem antiga das sociedades humanas repousa sobre três homens que
são suas pedras angulares  e  dos quais  a  idéia social contém um pouco de
cada um:  o Rei, o Padre, o Verdugo"
(Joseph Maistre)


João de Páris, em 1302, empenhado em defender o Poder Político do Poder Eclesiástico, foi o primeiro a invocar a doutrina do laicismo. Foi seguido por Galileu Galilei que defendia a ciência dos mesmos perigos, e por Occam que, por razões semelhantes, reivindicava a autonomia completa da filosofia. Se teoricamente os Estados ocidentais são na grande maioria considerados laicos, na prática, vemos o poder clerical infiltrando-se nos parlamentos e interferindo cada vez mais nos assuntos políticos das nações. O cenário onde ocorreram as recentes eleições e o comprometimento religioso das lideranças do atual governo podem nos dar uma vaga idéia tanto do grau de ingerência clerical no governo, como da anemia do Estado laíco.


Historicamente vemos que é impossivel separar Religião e Dominação, e que essa dupla aparece ilustrando a historia inteira da humanidade, desde seus primórdios tribais até nossos dias, sempre partindo da dominação "espiritual" (isto é, ideológica e de consciência), para a dominação política, e social. Não foi por acaso que mesmo ditadores vaidosos como Napoleão, Franco, Salazar, Hitler, Mussolini, todos os governos repúblicanos brasileiros e outros, sempre viram na igreja um auxiliar precioso para submeter e governar as massas e o povo.

Como no seio das sociedades primitivas, onde cabia aos feiticeiros e aos chefes o Poder de fazer chover, de fazer o sol nascer, o vento parar, a lua continuar suspensa no espaço, nas Monarquias que antecederam o Estado Moderno, e no próprio Estado Moderno dos dias atuais, ainda é, de maneira dissimulada ou não,  simbólica ou não, o <padre> e o <rei> que definem e que determinam a grande maioria das regras de conduta da sociedade. Não necessariamente envergando a batina ou carregando sobre a cabeça uma coroa, mas travestidos de executivos e invisíveis à sombra de uma República laica. Ali, esses <testas-de ferro> das mais variadas religiões, seguem ocupando altos cargos públicos, burocráticos e governamentais, bem como outras posições públicas privilegiadas, que lhes permitem seguir militando em favor de uma «moral particular» e favorecer materialmente a igreja de onde são provenientes..

Nos 25 anos de ditadura militar brasileira, vimos que a igreja »sabiamente» rachou-se ao meio: uma parte ficou com os militares, a outra, engajou-se na luta política a favor da sociedade civil massacrada. "Longe de ser monolítico, - escreve Antoine Charles, em Les catholiques brésiliens sous le régime militaire - o catolicismo brasileiro é impregnado de sensibilidades extremamente diversificadas, de movimentos contraditórios, de conflitos internos que chegam, as vezes, ao enfrentamento". Assim, enquanto uma ala da igreja assessorava os verdugos, outra ala consolava as vítimas, enquanto uma ala se cumpliciava com os militares a outra de prontificava a consolar as massas oprimidas e as vítimas. E esta  tática, basta correr os olhos pela história para ver, tem sido usada pela igreja ao longo dos séculos, sempre com os olhos na manutenção do status quo e do Poder, de um Poder Clerical que parece indissociável do Poder do Estado. "O poder clerical - afirma Thibault – é um poder ministerial e um tal poder pode tornar-se absoluto na medida em que sua base e seu mandato (por questões de fé) são incontestáveis.

Se por um lado a igreja é a única instituição que tem capacidade de dividir-se diante de uma crise socio-política como a ocorrida no Brasil, naqueles anos, por outro, ela demonstrou que quando a crise chega ao fim, quando a tempestade passa, ela é praticamente a única instituição que reaparece intacta, fortalecida e que se re-apresenta no alto do espetáculo social como se nada tivesse acontecido. "Os católicos brasileiros –continua Charles Antoine- após o regime militar reapareceram com uma presença eclesiástica massiva nos meios sociais pobres, onde havia crescido a credibilidade popular neles; com vínculos fortes com os intelectuais e com a vitalidade evangélica visívelmente aumentada..

E é ingenuidade pensar que a Igreja defende esta ou aquela forma de governo, esta ou aquela Constituição; este ou aquele regime. Quando ela chegou ao extremo de colocar-se a favor deste ou daquele governo, o fez sempre porque viu seu Poder colocado em risco ou, então, como já dissemos, porque viu uma chance de avançar ainda mais sobre as estruturas sociais. Como escrevia Anatole France em seu tempo "Não é verdade que a igreja condena o Estado republicano. Ela considera, ao contrário, que o Poder dentro de uma República ou de uma Monarquia, vem de Deus (...) Ela não considera que a República seja malvada em si, mas ela a julga ruim quando ela institui a liberdade de consciência, a liberdade de ensino e a liberdade da imprensa"  E isso não pode surprender-nos, pois observando  a história   do  Estado Moderno, vemos que mesmo ele foi inspirado pela igreja e na estrutura clerical, e que, principalmente, os «homens de Estado» tiveram e têm ainda por guia, não somente a hierarquia imaginária do além, adaptada à vida terrestre, mas também aquela que inspira e comanda a vida social, que cria as diferenças, as classes, as desigualdades e as injustiças. Em outras palavras, como escrevia Leval, que a igreja consagra ao mesmo tempo a riqueza e a pobreza e faz do Estado um instrumento de dominação.

O Estado, com sua pretensa função de rapport social de dominação do homem sobre o homem, fundado no monopólio do exercício legítimo da violência física, com sua rede monstruosa de poderes, foi e é para a igreja, um instrumento precioso para o exercício de sua dominação <espiritual> e para a pregação de sua «ideologia». Os aparentes conflitos e brigas que historicamente e na atualidade vimos acontecer entre a igreja e o Estado, entre a igreja e os governos, entre os bispos e os políticos, entre os padres e os burocratas, foram pseudo-conflitos e pseudo-brigas, muito mais na disputa pelo Poder do que por questões propriamente religiosas, teológicas, ideológicas, etc. Ninguém pode negar que tanto a teologia como a ideologia tem servido principalmente para escamotear a disputa tanto pelos postos de comando dentro da máquina administrativa estatal como dentro do clero e, naturalmente, para definir o «loteamento» dos domínios sociais. Quem domina a educação? Quem domina a saúde? Quem domina os cartórios? Quem domina as forças armadas? Os hospitais? Os hospícios? Quem domina a indústria da fome que a América Latina e principalmente o Brasil, viu ser implantada e fomentada com inédita crueldade? Como era óbvio de se supor, acabaram os dois, a igreja e o Estado, lado a lado, ombro a ombro, dividindo pacíficamente todos esses terrenos. A igreja, com o pretexto de que seu poder foi legitimado por Deus, o Estado, com a desculpa de que sua violência é legitima e que lhe foi outorgada pela vontade popular. Diferenciados essencialmente por uma questão terminológica e revestidos cada um por seu sofisma pessoal, convivem relativamente em harmônia, pois sabem, que apesar de ambos encarnarem um poder e um autoritarismo de origem transcendental, seu verdadeiro interesse é pela dominação terrenal.

No caso específico do Brasil, essa simbiose é tão antiga e tão <natural>, que nem mesmo os próprios envolvidos tem consciência de sua origem e muito menos de seus objetivos. Ela nos foi transmitida pelos ilustres colonizadores, os velhos e simpáticos portugueses, que fizeram exatamente o mesmo com mais ou menos sucesso, em todas suas outras colônias, seja com Macau, na Asia, ou com os negros na África.

Só para lembrar, em Portugal, na segunda metade do século XVIII,  o anticlericalismo, se materializou temporariamente com uma ação direta do Marquez de Pombal contra a igreja, com a justificativa de que ela dispunha de excesso de poder, de excesso de riqueza e demasiadas ambições políticas. O episódio, longe de caracterizar uma medida política, no sentido histórico do termo, foi apenas uma ação defensiva. O Marquez sentiu seu Poder político ameaçado e mobilizou-se para enfraquecer a instituição que representa essa ameaça. Isto ficou claro, quando já em 1840, viu-se o Estado e a Igreja novamente juntos. Voltaram a coabitar, como se essa curta separação lhes tivesse servido para esclarecer a <paixão> que os une e para fazer cada lado sentir que sem o <outro> a penetração sobre as massas encontrava mais obstáculos. Mas ainda não será desta vez a grande reconciliação. Ainda há choques, os líderes e os chefes de cada bando se atacam mutuamente, com a igreja aparentemente levando desvantagem, principalmente quando nasce e se instala a República portuguesa (1910), pois com ela serão tomadas uma série de medidas abertamente anticlericais, mas que também são passageiras e efêmeras. Em 1940, com o Estado Novo a simbiose voltará a se reestabelecer.

É interessante notar que no auge das medidas anticlericais, do confisco dos bens da igreja, do fechamento de associações, escolas e centros religiosos, bem como da exoneração de padres, etc, etc., o governo português  mergulhado numa contradição e numa ambivalência profunda, coloca à disposição dos religiosos, (das <vítimas> de suas  medidas) vários cargos e funções públicas. Esse tipo de estratégia, essa maneira sutil de «comprar os adversários» é uma prática  que o Estado veio fazendo ao longo de sua existência, principalmente com os intelectuais e com os líderes oposicionistas.
Evidentemente, que os padres e os religiosos, pelo poder natural «sagrado» que detinham e pela boa formação intelectual, seriam muito mais úteis para os governantes dentro, do que fora do Estado.

Com a chegada de Salazar ao Poder, era evidente que a igreja poderia respirar aliviada e recuperar seu lugar privilegiado junto e dentro do Estado. A Constituição de 1933 foi o primeiro passo para essa conquista da igreja católica,  pois entre outras coisas, essa Constituição pretende garantir a liberdade de consciência; a liberdade de culto; e a liberdade de ensino. É nesta última liberdade que a igreja fixa os olhos e por quem seu <coração> bate com mais força, pois ela sabe que nenhum lugar é mais propício que a escola para o <doutrinamento> e o embotamento ideológico-moral das consciências. Seu anseio foi mais do que realizado pelo ditador, que, três anos depois, para a euforia do episcopado, reintroduz os crucifixos nas salas de aula e o ensinamento moral cristão nas escolas. De mãos dadas, o Clero e a Ditadura de Salazar juntos, procuram identificar ou mesmo inventar um inimigo comum que, evidentemente, naquele momento histórico, não poderia ter sido outro além do comunismo. Essa doutrina que, desde 1917, vinha sendo implantada na URSS, que rondava a Europa Central e que ameaçava infiltrar-se nos países pobres do mundo, tinha um perfil adequado para ser o símbolo daquilo que a igreja e os ditadores queriam atribuir aos seus inimigos: era a encarnação perfeita do <mal>, tanto para a República burguesa ocidental (essa Monarquia travestida), como para a igreja e o clero, pois o comunismo trazia em sua essência tanto a revolução proletária como o ateísmo.

No meio dessa cumplicidade, a igreja recebe de Franco o presente que ela mais desejava: a responsabilidade sobre todos os "cursos" pré-elementares, com o que, ela tem acesso a todas as crianças de Portugal e das colônias.

Apesar de todo esse caminho que mentalmente acabei tendo que percorrer, o que me interessa aqui é chamar atenção para o fato de que no Brasil, apesar do Estado ser juridicamente laico, a administração pública tem sido praticamente uma extensão da administração clerical. Que desde as prefeituras municipais, e os governos estaduais até o Poder Federal, as autoridades e os postos de mais alto escalão estão, em regra, nas mãos de pastores, ex-padres, ex-seminaristas ou, quando não, de devotos que, antes de tomar qualquer medida administrativa, costumam consultar o vigário, o bispo, ou até a Cúria Metropolitana. Uma recente pesquisa informal, em Brasília, demonstrou que dentro dos principais Ministérios, existe mais bíblias que constituições e mais crucifixos que bandeiras do país. Se isso constitui um «mal» ou um «bem», não interessa especular neste momento, a idéia agora é apenas lembrar a presença cada vez mais comprometedora (tão bem evidenciada neste período de campanhas) desse amálgama, dessa mescla e dessa simbiose entre igrejas, política e administração pública, lembrando, evidentemente, que para pensadores como Bakunin, tanto a igreja como o Estado são dois gênios malignos, tão antigos como a história, as duas serpentes que, até hoje, devoraram tudo o que a história produziu de humano e de belo.

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